Reposição de Testosterona e Segurança Cardiovascular - estudo TRAVERSE
HIPOGONADISMO
6/18/20235 min read




por Antônio Eduardo Nakamura
Uso de testosterona é um tema que sempre gera polêmica. Nesta semana foi apresentado no ENDO 2023 em Chicago e publicado no New England Journal of Medicine o estudo TRAVERSE - Segurança Cardiovascular da Terapia de Reposição de Testosterona.
O artigo busca tentar preencher um espaço na literatura sobre a segurança do uso de testosterona em homens COM HIPOGONADISMO (ponto de muita atenção aqui). Até então a maioria dos estudos eram pequenos, observacionais e com resultados conflitantes. Vamos aos highlights do estudo e nossa opinião sobre.
METODOLOGIA
Ensaio clínico randomizado de não inferioridade, controlado por placebo, duplo-cego, realizado em vários centros clínicos nos Estados Unidos (316 centros).
O estudo foi financiado por um consórcio de fabricantes de testosterona.


O estudo selecionou homens entre 45-80 anos, com pelo menos um sintoma de hipogonadismo, dosagem sérica de testosterona total < 300ng/dL (repetida e confirmada, medida pela manhã e por cromatografia líquida / espectometria de massa) e com doença cardiovascular (doença coronariana, doença cerebrovascular, ou doença arterial periférica) OU risco cardiovascular elevado (3 ou mais dos seguintes fatores: hipertensão, dislipidemia, tabagismo ativo, doença renal crônica estágio III ou mais, diabetes mellitus, PCR elevada, >65 anos ou escore de cálcio >p75).
Importante destacar aqui os critérios de exclusão:
- Testosterona total < 100ng/dL
- Histórico de câncer de próstata/ nódulo prostático OU escore de sintomas prostáticos > 19 (IPSS)
- PSA > 3ng/mL ou > 1,5 se em uso de inibidor de 5-alfa redutase
- Trombofilia
- Insuficiência cardíaca descompensada
- Evento cardiovascular recente ou revascularização recente (<4m)
- Uso recente de testosterona (<6m)
Os pacientes foram randomizados em uma proporção 1:1 para receber testosterona gel 1,62% ou gel de placebo com dosagens proporcionais em volume. O alvo de testosterona no grupo intervenção era de 350-750ng/dL.
Os desfechos avaliados foram:
- Primário: primeira ocorrência de eventos cardiovasculares combinados (morte cardiovascular, IAM não fatal, AVC não fatal).
- Secundário: primeira ocorrência de eventos cardiovasculares combinados (morte cardiovascular, IAM não fatal, AVC não fatal, revascularização miocárdica)
- Terciário: morte por qualquer causa, hospitalização, visita ao hospital por insuficiência cardíaca, revascularização arterial periférica e eventos tromboembólicos.
RESULTADOS
O estudo randomizou um total de 5246 pacientes, dos quais 42 foram excluídos por duplicação de inscrição. Do total, 2601 pacientes foram alocados para receber testosterona e 2603 alocados para receber placebo. A média inicial de testosterona sérica da população era 227ng/dL (tanto grupo placebo, quanto intervenção). A duração média de tratamento no grupo testosterona foi de 21,8 meses (seguimento médio de 33 meses) e 21,6 meses no grupo placebo (seguimento médio de 32,9 meses). A dose média diária de testosterona foi de 65mg/dia e titulada para que os níveis séricos de testosterona permanecesem entre 350-750ng/dL.
Total de 61,% dos pacientes no grupo testosterona descontinuou o tratamento, enquanto 61,7% no grupo placebo também descontinuou o tratamento. Total de 20,8% dos pacientes descontinuaram o estudo antes da última visita, sendo similar entre os dois grupos.
O desfecho primário ocorreu em 7% no grupo testosterona e 7,3% no grupo placebo (HR 0,96 IC 0,78-1,17 p < 0,001 para não inferioridade).
Em relação a eventos adversos, houve maior incidência de arritmias não fatais (5,2% x 3,3% p 0,01), fibrilação atrial (3,5% x 2,4% p 0,02), injúria renal aguda (2,3% x 1,5% p 0,04). Houve também maior incidência de embolia pulmonar no grupo testosterona (0,9% x 0,5%).
OPINIÃO PESSOAL
Ao analisar o apêndice do estudo, observamos que alguns desfechos avaliados (alterações cutâneas, prostáticas, neuropsiquiátricas, ósseas, etc) ainda não foram publicadas e serão alvo de publicações futuras. Na apresentação no congresso também foi mencionado sobre aumento do risco de fraturas no grupo que usou testosterona, porém os autores não encontraram motivo para tal achado. Não há também menção sobre dosagem de SHBG, ponto que acho que deveria ter sido avaliado, já que a grande maioria dos pacientes encontrava-se com níveis de testosterona entre 200-300ng/dL. Considerando o fato de que o IMC médio dos pacientes do estudo era de 35kg/m2, imagino que uma grande parte dos hipogonadismos eram decorrentes da própria obesidade (Male Obesity Secondary Hypogonadism) e nesse caso o ideal não seria fazer terapia primária com reposição de testosterona (uma grande parte desses pacientes nem tem hipogonadismo, tem apenas dosagem baixa de testosterona total falseada pela redução dos níveis de SHBG). Mesmo com todas essas considerações, ainda assim houve aumento significativo na incidência de injúria renal aguda, arritmia / fibrilação atrial e tromboembolismo pulmonar, o que ainda mantem a dúvida quanto a segurança do uso de testosterona na população de homens com hipogonadismo e alto risco. Quanto ao desfecho primário que o estudo se propôs avaliar (3 point MACE), não houve diferença em relação ao placebo.
Em suma:
PROS
- Ensaio clínico randomizado, placebo controlado, duplo-cego
- Tempo razoável de seguimento (quase 3 anos)
CONTRAS
- Grande parte da população com obesidade / diabetes, provavelmente desfechos aplicáveis principalmente a homens com MOSH
- Usou nível de testosterona total, sem avaliar níveis de SHBG (provavelmente baixos, já que a maior parte da população tinha obesidade / diabetes)
- Excluiu pacientes com testosterona < 100 (população que geralmente não precisa de cálculo de testosterona livre / dosagem de SHBG)
- Alta taxa de descontinuidade de tratamento (~60%) - será que quem descontinuou o tratamento não tinha maior risco de desfechos adversos?
- Estudo financiado por farmacêuticas vendedoras de testosterona
CONCLUSÃO
Na minha opinião não é um estudo "bala de prata" que encerra a discussão do tema. Ainda permanece uma lacuna na literatura e são necessários mais estudos (independentes) para avaliar a segurança da REPOSIÇÃO de testosterona em pacientes hipogonadicos com alto risco cardiovascular. Devemos ter MUITO cuidado na interpretação desse resultado e temo que esse estudo possar ser usado por pessoas mal intencionadas para justificar má prática clínica extrapolando os dados para outras populações.
Referência:
Lincoff AM, Bhasin S, Flevaris P, Mitchell LM, Basaria S, Boden WE, Cunningham GR, Granger CB, Khera M, Thompson IM Jr, Wang Q, Wolski K, Davey D, Kalahasti V, Khan N, Miller MG, Snabes MC, Chan A, Dubcenco E, Li X, Yi T, Huang B, Pencina KM, Travison TG, Nissen SE; TRAVERSE Study Investigators. Cardiovascular Safety of Testosterone-Replacement Therapy. N Engl J Med. 2023 Jun 16. doi: 10.1056/NEJMoa2215025. Epub ahead of print. PMID: 37326322.